É talvez o menino suspenso na memória. Duas velas acesas no fundo do quarto. E o rosto judaico na estampa, talvez. O cheiro do fogão vário a cada panela. São pés caminhando na neve, no sertão ou na imaginação. A boneca partida antes de brincada, também uma roda rodando no jardim, e o trem de ferro passando sobre mim tão leve: não me esmaga, antes me recorda. É a carta escrita com letras difíceis, posta num correio sem selo e censura. A janela aberta onde se debruçam olhos caminhantes, olhos que te pedem e não sabes dar. O velho dormindo na cadeira imprópria. O jornal rasgado. O cão farejando. A barata andando. o bolo cheirando. O vento soprando. E o relógio inerte. O cãntico de missa mais do que abafado, numa rua branca o vestido branco revoando ao frio. O doce escondido, o livro proibido, o banho frustrado, o sonho do baile sobre chão de água ou aquela viagem ao sem-fim do tempo lá onde não chega a lei dos mais velhos. É o isolamento em frente às castanhas, a zona de pasmo na bola de som, a mancha de vinho na toalaha bêbeda, desgosto de quinhentas bocas engolindo falsos caramelos ainda orvalhados do pranto das ruas. A cabana oca na terra sem música. O silêncio interessado no país das formigas. Sono de lagartos que não ouvem o sino. Conversa de peixes sobre coisas líquidas. São casos de aranha em luta com mosquitos. Manchas na madeira cortada e apodrecida. Usura da pedra em lento solilóquio. A mina de mica e esse caramujo. A noite natural e não encantada. Algo irredutível ao sopro das lendas mas incorporado ao coração do mito. É o menino em nós ou fora de nós recolhendo o mito. |
26 de dez. de 2010
"Interpretação de Dezembro"_Carlos Drumond de Andrade
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